O
mestre dos espaços
Cristiano Capovilla*
A título de homenagem ao professor de teatro Luiz
Pazzini, resgato uma pequena crítica que realizei sobre uma das suas montagens
realizadas na UFMA em 2007. A peça Diálogo
das memórias: o imperador Jones foi apresentada no átrio, corredores e
rampas do Centro de Ciências Humanas (CCH) a um público de aproximadamente cem
pessoas. Elas tiveram que se deslocar pelos lugares inusitados do prédio para
poder acompanhar o desenrolar do enredo. O público, a encenação, o texto e o
deslocar pelos ambientes interagiram em uma mesma composição claramente
experimental. Foi sobre o impacto dessa montagem que trago ao público minhas
impressões, procurando lançar um feixe de luz sobre o pouco conhecido e
debatido teatro contemporâneo maranhense.
Destacam-se três trajetórias simultâneas e sobrepostas na
montagem do Imperador Jones por
Pazzini: a relação da apresentação com o público, o trabalho com o texto e a
interação com o espaço.
Estudioso de Bertolt Brecht, para quem o espaço da manifestação
teatral sempre foi uma questão complexa, Pazzini incrementou a proposta de
articular a montagem de forma que atores e espectadores se misturassem nos
espaços, relacionando-se reciprocamente, fazendo interagir corpos, vozes,
gestos, ocasionando ruídos que não podiam e nem deviam ser desprezados durante
a própria encenação. Os contatos da peça com a realidade, incontroláveis e
imprevisíveis, são assimilados pela própria trama, causando uma flutuação no
agir cênico. Elevava, com isso, a relação ator-público, teatro-realidade,
estética-ontologia, aos níveis teóricos mais altos dessa questão.
Essa emersão da ação cênica em espaços inusitados,
interagindo com a surpresa de um público que não esperava encontrar uma
encenação em seu caminho, provoca uma mistura de emoções de onde surge uma
realidade efêmera, sustentada por uma unidade de opostos. A relação entre
atores, público e o meio onde se desenrola a peça provoca uma interação
imoderada, conformando uma totalidade de contrários, evidenciando uma unidade,
ainda que passageira, de elementos distintos. Essa parece ser a matéria-prima com
qual a experiência teatral de Pazzini procurava trabalhar.
A relação do público com a surpresa do experimento
teatral foi, sem dúvida, a parte mais importante do espetáculo. Aqui se deu o
resultado do choque de realidade: risos, medo, espanto, curiosidade, admiração,
críticas, surpresa, atenção e desinteresse foram os sentimentos emitidos pelos
espectadores presentes. Esse choque
intencional parece querer provocar um rompimento com a apatia e causar um
turbilhão de sentimentos em quem de alguma forma participa, mesmo a
contragosto, da ação cênica. Nada mal para quem se arrisca no desenvolvimento
de novas linguagens e procura integrá-las ao cotidiano de um espaço de estudos
e trabalho.
A conjunção peça-público desperta afetos que vão do
desconforto consigo e com tudo aquilo que nos rodeia até a ira e a angústia por
aquela audiência desejada-indesejada. Não se trata, a meu ver, da intenção do
diretor de querer provocar um desalento imaturo e juvenil, na forma de um
existencialismo subjetivista, mas, sim, de demonstrar o incômodo da
fragmentação de perspectivas, do choque objetivo das contradições da realidade,
a fim de externar estilhaços de um mundo em lutas, guerras, miséria, violência
e ignorância. Os atores, ora sozinhos, ora em coro, causavam uma inquietação ao
público ao trazerem à cena uma realidade incompleta, cindida e medíocre, que se
mostrava contente no seu próprio mal-estar. Era isso que perturbava a
audiência.
Mas as consequências da montagem não pararam por aí. O
incômodo foi o caminho encontrado para conduzir o expectador à reflexão, ao
aprendizado, para a ação! O próprio acompanhamento do desenrolar da peça requeria
um percurso do público pelos diversos espaços da universidade. Pazzini conseguiu
provocar uma vontade, uma dúvida que inquietou e conduziu o expectador até o epílogo.
O sofrimento, a angústia, passou a ser a ascese necessária à compreensão da
obra e, ao fim e ao cabo, ao autoconhecimento de nós mesmos que a assistíamos.
O texto base escolhido para a encenação foi o Imperador Jones (The Emperor Jones) do dramaturgo estadunidense
Eugene O’Neill, de 1920. É um texto complexo, que introduziu o expressionismo
na cena teatral dos EUA e que mexe com alguns dos dramas mais caros à
contemporaneidade. Na trama, Jones é um negro pobre que ascendeu através de um
crime à condição de rei déspota e tirano cujos súditos são também negros. Estes
se revoltam, tomam o poder e levam Jones à morte. Mas é em cena que os diálogos
mostram a psique caleidoscópica dos personagens. Na montagem de Pazzini, o longo
diálogo introdutório foi executado por quatro atores, o que deu dinâmica,
velocidade e centralidade ao prólogo, deixando transparecer todos os caminhos
psicológicos, políticos e sociais que aparecem no debate entre Jones e seu
assessor Smithers.
O diretor também coteja o texto de O’Neill com outros
textos, selecionados a partir de uma vivência própria, de outras montagens,
cujo resultado é uma seleta de passagens que ruminam sentenças anteriormente já
ingeridas pelo público. Temos, assim, o desfile de autores teatrais e filósofos
do porte de Bertolt Brecht, Walter Benjamim, Albert Camus, George Orwell, Heine
Müller e, como não poderia deixar de ser, a inserção de autoras maranhenses como
Lenita Estrela de Sá e Maria Firmina dos Reis, trazendo para nossa aldeia o
universal do realismo norte-americano.
O trabalho com o texto em um experimento teatral é a
ponte entre o público e a obra. Essa ponte é materializada nos usos da
linguagem. O choque de realidade é, antes de tudo, um atravessar de horizontes linguísticos.
Há um estranhamento na comunicação, um jogo entre o dito e o não dito, onde o
expectador reclama do deslocamento do seu entendimento imediato, mas, mesmo
assim, acompanha os signos vocalizados na montagem do texto, pois no seu íntimo
reconhece como comum o que a princípio lhe parecia distante e inacessível. Aqui,
mais uma vez, Pazzini levou ao limite o trabalho com o texto. Ao que parecia
ele não tinha medo de arriscar na narrativa fracionada do seu teatro
experimental. E o resultado foi sempre surpreendente.
Ao romper com a cisão entre ator e espectador nas
montagens, utilizando espaços inusitados na própria arquitetura da universidade,
sobressaia ainda uma terceira trajetória do seu teatro que deriva reflexão: os
vínculos entre espaço-morto e espaço-vivo na arquitetura onde trabalhamos
e vivemos. Ao desenvolver o contexto cênico em locais comuns de trabalho,
estudo e nos espaços-mortos – aqueles
que aparentemente parecem não ter utilidade – da nossa universidade, a peça nos
chamava a questionar mais profundamente a relação entre a arte e o cotidiano.
Ao expressar trabalho artístico em locais não utilizados,
os chamados espaços-mortos, recompomos
a própria noção de ambiente a partir do sujeito (ator-expectador), que, ao
encontrar arte onde não deveria haver nada, supera o utilitarismo que fraciona
os ambientes da vida, fazendo da cena teatral em um lugar inusitado uma
profunda crítica à divisão do trabalho, do saber e do lazer, fator
preponderante da alienação dos espíritos. Pela força da arte, o espaço
arquitetônico deixa de ser compreendido apenas como um espaço geométrico,
neutro, que distancia e separa o útil do inútil, passando a ser enxergado como
um espaço público, unificador, vivo, atual e possível. Os espaços abertos devem
aproximar nossas ações. Essa foi uma característica singular do trabalho
experimental do teatro de Pazzini.
Com todas as dificuldades inerentes ao fazer teatro em
nosso estado, na nossa cidade e em nossa universidade, enfrentando toda sorte
de carência e falta de apoio, Pazzini e seu grupo não temiam experimentar novas
linguagens teatrais. O choque de realidade e a reação do público-surpresa se tornou mais efetiva, menos óbvia e por isso
mesmo mais interessante. A UFMA e o seu curso de Teatro estão de parabéns. Se
pudermos caracterizar o trabalho de Pazzini na cena teatral maranhense com
apenas uma oração, poderíamos afirmar que se trata sem dúvida de um mestre dos espaços cênicos.
Pazzini, presente!
Agora e sempre!
* Professor de
Filosofia COLUN/UFMA
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