As duas formas de violência fortalecem
a economia global: a não dolosa e a dolosa. A violência não dolosa cresce a
olhos vistos. Está na gênese dos indicadores econômicos que projetam países
como o Brasil no contexto internacional. A relação de causa e efeito é patente.
Ao se globalizar modelo único de sociedade, o mundo ficou mais violento.
Para o pensador belga Ernest Mandel,
uma coisa está ligada à outra. É a alma do capitalismo consumista. Consumismo é
modalidade sutil de violência, porque ignora limites éticos ao incentivar o
vício da compra inconsequente. Nunca o ter foi tão superior ao ser. O fascínio
do ter perverte o ser e faz dele mero objeto da lógica materialista. Abundância
extravagante é paisagem da sociedade de consumo. Sabe seduzir para roubar os
parcos recursos da economia doméstica. O gasto desnecessário ganhou status de
avanço social. Poupar é retrato do passado. Em breve, será enquadrado como ato
lesivo à cidadania.
Não se admite discutir outro modelo de
sociedade que não a de consumo. Considera-se inimaginável um mundo feliz sem o
entulho da mercadoria supérflua. Promoção humana virou sinônimo de acúmulo de
bens materiais, não de intelecto. Educação não se cultiva, compra-se. Leitura
já não requer concentração, só digitação em parafernálias mais atraentes que o
conteúdo dos textos. Inclusão social cedeu lugar à inclusão digital. A era do
cérebro substitui-se pela era do dedo. Escola é rota para concursos, não mais
templo da formação em humanidades. Ética é utopia poética, nada mais.
Elites regozijam-se diante da
facilidade em navegar nas ondas seguras do poderio negocial entranhado na
cultura dos tempos modernos. A violência não dolosa do poder dominante
multiplica fortunas com rapidez jamais vista. Tudo é lucro. A liberdade de
exploração é plena. Qualquer sorte de emprego é essencial. Não importa o valor
do salário pago nem o que produz. O recurso do crédito é a solução mágica.
Incha o ego e o bolso do credor. Aniquila o devedor. O que conta é o número
crescente de escravos do consumo. O resto é balela moral de mentes
ultrapassadas.
O cenário urbano de hoje é fotografia
do involucionismo da espécie. Ruas, praças, avenidas, calçadas e demais espaços
públicos já não são a mesma coisa. Converteram-se em pátios de montadoras
repletos de automóveis que transitam com a velocidade das antigas carroças. As
rodovias são túneis da morte. No ano passado, 42 mil brasileiros morreram em
acidentes de trânsito. Nada disso importa. Vender carros é a meta a ser
realizada a qualquer preço, inclusive ao da propaganda enganosa que nunca
mostra o automóvel circulando morosamente nas centenas de quilômetros de
lentidão que desqualificam o cotidiano das cidades. Transporte coletivo de
qualidade é conversa para boi dormir. Não aquece a economia. É projeto que
todos os governos brasileiros trancaram na gaveta. Corre risco de ir para o
lixo. A indústria automobilística comanda o espetáculo nas ruas e governa o
país nos bastidores.
Até o comércio rompeu as barreiras que
racionalizavam sua expansão. Vale tudo. O pobre e despojado menino Jesus, cujo
nascimento se comemorava no Natal, foi esquecido. Envelheceu na figura do Papai
Noel, que lhe roubou a cena do presépio. Uma árvore congestionada de atrativos
de consumo tornou-se símbolo daquela data. O próprio calendário mudou. O
preparo para as vendas natalinas foi antecipado. Começa em outubro. É a
estratégia de apropriação do 13º salário dos trabalhadores. Bonecos gigantes de
Noel povoam marquises de lojas para estimular o sonho consumista das pessoas.
Forma dissimulada de violência, bem aceita pelos códigos da democracia
republicana em vigor.
Segundo verbo em moda, a violência dolosa
também robustece a economia. Crimes de qualquer natureza têm valor econômico.
Geram empregos; expandem a indústria da segurança; justificam aumentos de
efetivos policiais, compra das armas e viaturas, construção de presídios,
aquisição de câmeras e outros equipamentos. Sem falar no atendimento
médico-hospitalar das vítimas, atividade que desdobra outro tanto de energia
econômica. Não por acaso, a mídia televisiva explora imagens da violência
dolosa que, estimulada, faz subir o PIB. O Brasil caminha para posição de
quinta economia do mundo. Resta saber se o fato de ser um dos países mais
violentos do planeta é causa ou consequência da sua evolução econômica. Se for
causa, o modelo de sociedade é condenável. Se consequência, urge mudá-lo. Se
correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.
Por Dioclécio Campos Jr., Médico e
Professor Emérito da UNB - Jornal "Correio Braziliense" de 22/11/12.
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